sexta-feira, 20 de maio de 2011

BUTÃO, ASIA- um país onde a felicidade bruta é mais impotante do que o produto interno bruto





No lindo Butão, país da Felicidade Interna Bruta, a beleza intocada, os templos milenares, o budismo e a pobreza começam a conviver com o computador, o celular e os hotéis de luxo.


Tenzin sobe os degraus de pedra de dois em dois, deixando os joelhos levemente à mostra. Seus sapatos, pretos e pesados, estão lustrados. As meias, também pretas, cobrem as canelas. Sua roupa é um pano único, xadrez, dobrado sobre o dorso como um quimono e enrolado à cintura, lembrando um kilt escocês. Ele vence a escada longa, bate à pequena porta do casebre da beira da estrada, e uma senhorinha atende. Tenzin pede licença, explica a situação e pergunta se sua cliente pode usar o banheiro. Apesar da luz da manhã, dentro da casa há algumas velas acesas. No fim do corredor, o vaso sem tampa, a torneira pingando, o balde como descarga. Um pequeno estrado de madeira impede que se sujem os pés. A pequena janela abre-se para a montanha verde, entre nuvens. Do lado de fora, um feixe de pimentas-vermelhas cai pendurado do telhado de metal. Tenzin, já de papo com a senhora, aguarda na saída, desce as escadas correndo para abrir a porta do carro e manda "Let's hit the road, babe".

Tenzin é alto, magro e usa gel no cabelo arrepiado. Sua pulseira de couro com tachinhas e a camisa de manga curta por baixo do gho - o traje típico butanês, exigido pelo costume em situações formais - dão um toque moderno ao visual ancestral. No pescoço usa um cordão vermelho abençoado por um monge. Diz que, antes de virar guia, fez bicos para criar os três irmãos menores depois que o pai morreu e que a mãe decidiu virar monja na Índia. Nasceu no Tibete, mas não voltou mais. Tem celular, fala "honey" e "babe" a cada fi m de frase e fuma cigarros indianos, comprados no mercado negro, escondido. Seus ídolos são o Bono, o Bon Jovi e o Bob Dylan. É um jovem típico do Butão de hoje.

O pequeno reinado budista de apenas 650 mil habitantes, aninhado entre as duas maiores potências asiáticas, a China e a Índia, é assunto em Harvard, em Oxford, no FMI. Em janeiro deste ano, economistas e intelectuais do Fórum Econômico Mundial, em Davos, se curvaram diante de um monge butanês para compreender o FIB, ou índice de Felicidade Interna Bruta, criado nos anos 1970 pelo ex-rei Jigme Singye Wangchuk, quando o Butão começou a se abrir ao mundo, depois de séculos de pobreza e isolamento. Mal sabia Wangchuk, o quarto da dinastia no poder desde 1907, que estava formulando um dos mais eficazes slogans sobre um país. O Butão passou a ser conhecido como o Reino da Felicidade, a última Shangrilá, o Jardim do Éden. E não é bem assim. O tal FIB é o que é um índice. Por meio de um intrincado modelo, aperfeiçoado ao longo de 30 anos, ele mede o bem-estar da população e define os rumos da nação, que teve suas primeiras eleições populares em março do ano passado, deixando de ser uma monarquia absoluta para virar uma monarquia constitucional. Cerca de 80% dos butaneses correram às urnas, seguindo um apelo do próprio rei, Jigme Khesar Namgyel Wangchuk (de 29 anos, formado em ciências políticas em Oxford). Mas os ares de democracia ainda não são percebidos. Para entrar no país, por exemplo, você precisa ser aprovado pelo governo, que controla o turismo. No ano passado, 21 mil turistas carimbaram Butão no passaporte. Mochileiros são desencorajados.

Mais voltado para si próprio que para o restante do mundo, o reinado encontrou no FIB uma fórmula de sobrevivência. Com quatro pilares, que são a economia, a cultura, o meio ambiente e o bom governo, ele se desdobra em 72 indicadores, que vão desde o bem-estar psicológico até o acesso à saúde e à educação. Extensos formulários são distribuídos à população de dois em dois anos para saber se o pai de família conversa com seus filhos sobre questões espirituais, se o adolescente tem orado e meditado todos os dias, se o cidadão foi atingido por sentimentos de egoísmo, ciúme, generosidade e compaixão e até por pensamentos suicidas. A todos esses itens se atribuem notas, ponderadas em complicadas fórmulas matemáticas.

"O objetivo não é a felicidade em si", esclareceu Kinley Dorji, secretário de Informação e Comunicações, em entrevista recente ao New York Times. "A felicidade é uma busca individual." Uma comissão especial se encarrega de avaliar como anda a coisa e tomar as medidas necessárias. Os resultados dessa grande enquete são públicos, acessíveis pela internet no site grossnationalhappiness.com. As respostas de 2007, quando os questionários foram aplicados pela última vez, são eloquentes. A maioria nunca sentiu ciúme ou pensou em suicídio, compreende as lendas locais, encontra conforto na família, pensa que não há nada que justifique matar ou mentir - afim com o pensamento e a prática budistas. Mas também aparecem preocupações, especialmente em relação à poluição dos rios, à perda do dialeto como primeiro idioma e da segurança ao caminhar sozinho à noite.

A Terra do Dragão Trovejante, ou Druk Yul, em dzonga, o idioma local, é o mais exótico dos destinos tão longe de nós e tão diferente de nós. Ao sul da Cordilheira do Himalaia, é cercado de montanhas vertiginosas por todos os lados, várias delas com mais de 7 mil metros de altura. É banhado por rios de águas cristalinas e tem 75% do território coberto por florestas. Vizinho ao Nepal, sede da mais alta montanha do mundo, o Everest, também vai bem em caminhadas. Tem construções grandiosas, como os templos, os monastérios e as antigas fortalezas. Na mais famosa delas, o Rinchen Pung Dzong, foram filmadas cenas de O Pequeno Buda, de Bernardo Bertolucci. Nessa imensa construção, repleta de salões com piso de madeira e altares multicoloridos, Tenzin interrompeu o jogo de futebol de crianças aspirantes a monges. A bola era um chinelo de borracha enrolado nas próprias alças.

Apesar de arco e flecha ser o esporte nacional, futebol foi o assunto do primeiro filme butanês da história, Phörpa, ou A Copa. Ele trata de um grupo de jovens monges que fazem de tudo para assistir às partidas da Copa de 1998, um ano antes da liberação ofi cial da TV no país. Sim, o Butão encerrou o século 20 sem ter televisão. Por muitos anos, acreditava-se que as influências do mundo exterior fossem prejudicar a cultura e a religião, mantidas como relíquias pela adorada dinastia Wangchuk. "Se antes você perguntasse a qualquer jovem quem é seu herói, a resposta inevitável era 'o rei'", disse Dorji. "Hoje é 50 Cent, o rapper americano."

O curioso é que um país tão remoto tenha visto seu primeiro programa de TV ao mesmo tempo que seu primeiro site. Em Thimpu, a capital, os cibercafés são o ponto de encontro por excelência. É ali que se paquera, abertamente (e mais de um por vez, já que a poligamia é permitida tanto para homens quanto para mulheres). Torpedos rolam soltos pelos celulares, que entraram no país há seis anos. Em setembro de 2008, foi eleita a primeira Miss Butão, numa prova de que também lá a mulher pode ser admirada por sua beleza. Outros sinais de modernidade são raros, mas podem ser encontrados sobretudo na hotelaria de luxo. Em Paro, onde está o único aeroporto asfaltado - de pista curta, aliás, o que proporciona uma aterrissagem aterrorizante, beirando paredões de mais de 4 800 metros de altura -, ficam dois hotéis-butique das redes mais luxuosas do mundo o Amankora e o Uma. Foi neste último, aliás, que Cameron Diaz resolveu dar um tempo três anos atrás. Tenzin, que também foi seu guia, ficou surpreso com a aparência desleixada da atriz, sempre de cabelo desgrenhado e moletom. Muito diferente do que ele via nos canais de TV a cabo.

Celebridades em busca de anonimato costumam ser vistas chegando a Paro nos dois Airbus A319 da Druk Air, a única companhia aérea (pertencente ao governo, claro). Richard Gere. Uma Thurman. Michael J. Fox. Diga um nome. Matt Dillon, que contracena com Cameron Diaz em Quem Vai Ficar com Mary?, passou uma semana com um grupo de quatro amigos americanos, um guia local e um paramédico, trazido especialmente de Los Angeles. No principal mercado de comida de Thimpu, numa sexta-feira às 8 da manhã, Matt desce da van com uma supercâmera digital em punho. Fotografa a mulher nepalesa de anel no nariz vendendo arroz. Pimentas-vermelhas gigantes empilhadas no chão. Uma mulher de cócoras vestida com a kira, a versão feminina do traje oficial, trocando vagens por dinheiro. Um homem de mãos ensanguentadas usando um facão para destroçar o que parecia, um dia, ter sido uma vaca. "Você não achou tudo aquilo impressionante?", pergunta-me meio abobalhado, em um modesto restaurante no caminho de Thimpu a Punakha, antes de seguir viagem.

Em Punakha fica o mais belo exemplar de arquitetura butanesa, o Punakha Dzong, de 1637. Dizem que Padmasanbhava, o Guru Rimpoche, que introduziu o budismo tântrico, ou tibetano, no Butão, no século 8, teria previsto que uma pessoa iria chegar a uma montanha parecida com um elefante e ali ergueria a "grande obra". Foi o que ocorreu, séculos depois, na confl uência de dois rios, o Mo Chu e o Pho Chu. Perto dali, isolado entre belos campos de arroz, está o Chimi Lhakang, templo ao qual recorrem casais com problemas para ter filhos. Uma haste em forma de pênis é utilizada pelo monge para abençoar o casal infértil.

O que pode ser visto, por nós, como engraçado lá é levado muito a sério. Falos gigantescos são pintados na fachada de algumas casas como símbolo de proteção. "Quanto mais pelos tiverem os testículos, melhor", diz Tenzin.

Nenhuma cidade tem semáforos de trânsito. Na capital, um único guarda zela pela ordem dos carros. Cannabis sativa nasce como capim no país inteiro, mas nunca para consumo, pois é proibido fumar tabaco ou qualquer outra substância. Serve de alimento aos porcos. Eu juro ter visto um monge com um punhado de cigarros artesanais na mão no Jampey Lhakhang, templo do século 7, não só antigo mas frequentado por pessoas antigas também, girando ad infinitum suas rodas de oração - cilindros ornamentados com inscrições de mantras presos a um manete. Mas pode ter sido efeito dos cogumelos com queijo, os shamu datze, do almoço.

Tenzin acreditava no poder das coisas. Para ele, ter comido carne de porco no jantar, por exemplo, podia ser a explicação para o ataque epiléptico que teve na manhã seguinte. Budistas não comem carne, budistas estão sempre sorrindo, o Butão é o reino da felicidade. Chavões que os ocidentais esperam encontrar quando vão para lá e que se desfazem um a um, como lhadars - as bandeiras brancas de oração - ao vento. Embora se prostrasse repetidas vezes diante da imagem do Guru Rimpoche e pusesse as mãos em prece sobre o peito, a boca e a testa cada vez que entrava em um templo, Tenzin eventualmente fazia coisas proibidas.

Quando caiu ao chão feito uma estátua, com a língua grudada ao céu da boca, Tenzin foi socorrido por Pema Dawa, dono do River Lodge Bumthang. Dawa endireitou o corpo do jovem guia, apoiou sua cabeça sobre duas kiras que custavam aos turistas mais de 1 000 dólares cada uma, esperou que se recuperasse. Tranquilamente, olhou para fora, um inacreditável vale, e, como um lorde inglês, me perguntou "Você aceita um chá?"


viajeaqui.abril.com.br

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