sexta-feira, 18 de março de 2011

A TRAGÉDIA DAS ENCHENTES - "são as águas de março fechando o verão..."



Nossa maior tragédia é não saber o que fazer com a vida.
José Saramago


As chuvas intensas no sudeste brasileiro, que acontecem nos meses de calor intenso entre outubro e março, ocorrem devido a um fenômeno denominado Zona de Convergência do Atlântico Sul. É uma concentração de massa de ar quente e úmida de longa permanência - pode ficar até cinco dias em uma região. Essa densa estrada úmida forma-se ao sul da Amazônia, passa pelo Centro-Oeste e chega ao Sudeste, onde se depara com outra massa de umidade proveniente do Atlântico Sul e geram uma imensidão de nuvens.

As correntes de massa de ar encontram um obstáculo na cadeia de montanhas da Serra do Mar, que segue pelo litoral brasileiro, de Santa Catarina até o Espírito Santo. O maciço de até 2000 metros de altitude da Serra do Mar que cerca a região cria uma barreira que aprisiona nuvens densamente carregadas, com até 18 quilômetros de altura. Vários sinais ao longo da estrada virtual emitem avisos amarelos e vermelhos: os combustíveis das precipitações que são o calor e a umidade em excesso explodem os cúmulos-limbos. Resultado: chuvas torrenciais persistentes e desastres localizados.

O excesso de águas pode provocar uma tragédia, mas para isso faz-se necessário a presença de um conjunto de variáveis, a saber: solo encharcado e instável por chuvas anteriores; declives acentuados de até 90 graus, inexistência de vegetação adequada, ocupação desordenada de áreas de risco (morros, encostas, vales, várzeas de rios, mangues), e leniência do poder público. Infelizmente todos esses fatores estavam presentes na região serrana do Rio de Janeiro no início de 2011.

As encostas de serras são normalmente compostas por uma tênue camada de terra sobre as rochas, com baixa capacidade de absorção. Chuvas de intensidade anormal atingiram as nascentes de pequenos riachos, que rapidamente se transformaram em rios caudalosos. Em um declive serrano, com falhas e por vezes sem vegetação, as águas vertem até quatro vezes mais rápido e arrastam consigo muita lama e tudo o mais que encontram pela frente. Uma avalanche de lama a incríveis 150 quilômetros por hora ceifou a vida de mais de 1000 brasileiros, sem qualquer distinção social.

O maior desastre natural brasileiro ocorrido na paradisíaca serra fluminense foi o apocalipse de uma combinação de fatores já conhecidos, exceto a intensidade recorde de chuvas em um curto período de tempo. Este fato levou alguns especialistas em clima a afirmar que esse fenômeno sem precedentes pode ter relação com as mudanças climáticas do aquecimento global. Outros cientistas afirmam ser prudente esperar períodos de 30 anos de eventos extremos para concluir se de fato há essa relação de causa e efeito.

Há dois tipos básicos de medidas preventivas: estruturais e não estruturais. As medidas estruturais envolvem obras de engenharia para contenção de cheias como barragens, diques, alargamento de leitos de rios e reflorestamento. São providências caras e por vezes complexas. As medidas não estruturais envolvem ações políticas de planejamento e gestão, como implantação de planos diretores e de drenagem que contemplem os riscos ambientais, sistemas de alerta em tempo real, principalmente em aglomerados humanos, onde possam ocorrer inundações e deslizamentos de terra.

Sistemas eficientes de gestão de uso e ocupação de solo, retratados nas leis de zoneamento constantes em planos diretores das posturas municipais já disciplinam o que pode e o que não pode se construir na maior parte das grandes cidades brasileiras. Moradores de áreas de risco devem participar em comunidades de processos e campanhas de mobilização e conscientização junto às autoridades públicas e pressionar por mudanças no modelo de intervenção urbana prevalente no Brasil. Esse modelo privilegia a especulação imobiliária, investimentos em uso intensivo de veículos automotivos, impermeabilização de solo, canalização de rios e córregos – um modelo anti-natural e falido, a gerar flagelos.

Populações de baixo poder aquisitivo moram em áreas de risco geológico não porque querem, mas por falta de opções em função de políticas públicas capengas. Ações de fiscalização enérgica devem ser uma constante, para evitar novas ocupações em áreas de risco e retirar os que lá estão. A água e o esgoto que todos querem na porta de casa certamente não é o que as chuvas de verão proporcionam. Os brasileiros estão cheios de enchentes e da lama advinda da incapacidade das autoridades em planejar e implementar obras e ações de prevenção.

Atualmente há 48 projetos de lei em tramitação no Senado brasileiro que versam sobre formas de prevenir mortes e prejuízos causados por eventos extremos da natureza. Todos esses projetos, de vital importância, estão longe de serem discutidos, votados e aprovados e não tiveram o devido engajamento da sociedade em cobrar celeridade de seus representantes. Enquanto isso, entre 2007 e 2009 subiu de 176 para 620 os municípios brasileiros afetados por enchentes e alagamentos. Estima-se haver mais de 5 milhões de brasileiros vivendo em área de risco.

Os cidadãos têm que ter a cultura da educação e da ética no convívio social, qual seja, o exercício da cidadania. Isto significa não ter o pensamento distorcido de só desfrutar dos serviços e bens públicos de forma pontual e, por vezes, oportunista ao desrespeitar posturas legais. Significa informar-se, envolver-se de forma coordenada, cumprir as leis e cobrar do poder público programas e ações permanentes de planejamento de longo prazo, voltadas ao bem-estar e segurança de todos.

Gestores públicos devem ser responsabilizados criminalmente por omissão e incúria, ao permitir baixas evitáveis e supérfluas em série contra a vida. A ocupação da região serrana do Rio de Janeiro, assim como muitos outros exemplos no Brasil, surge sob o olhar obtuso e populista das autoridades escorado em acordos espúrios com loteadores ou com a formação de clientelismo eleitoral dos ocupantes de áreas de risco, como várzeas, vertentes e morros. É uma tarefa hercúlea ir adiante com leis punitivas ao poder constituído, pois são eles mesmos os autores de leis. Não vale anistiar a ilegalidade e a improbidade e sim a judicialização da política pública por meio de ações do Ministério Público.

Mart Luther King já dizia: “... sonho com o dia em que a justiça correrá como água e a retidão como um caudaloso rio”. Os moradores vizinhos à Serra do Mar, assim como todos os brasileiros, esperam ansiosos por esse dia, inclusive os fãs de Tom Jobim. A casa de campo do gênio da música popular brasileira situada na serra carioca foi completamente destruída pelas águas do verão. Quis o destino que aquele belíssimo local servisse de inspiração para a criação do clássico Águas de Março: “... é o fim do caminho ... é a lama, é a lama ... é um resto de mato, na luz da manhã ... pau, pedra, fim, caminho, resto, toco, pouco, sozinho, caco, vidro, vida, sol, noite, morte ... são as águas de março fechando o verão”.
Artigo publicado 24/02/2011 por Rodnei Vecchia em http://www.webartigos.com

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